No meio da semana passada, uma declaração de Jair Bolsonaro mais uma vez levantou discussões a respeito da Ditadura Militar e da forma como o presidente encara o período. De acordo com o porta-voz do governo, Otávio Rêgo Barros, Bolsonaro emitiu um comunicado para as Forças Armadas recomendando que os comandantes das guarnições realizassem as “comemorações devidas com relação ao 31 de março de 1964”. Hoje, completam-se 55 anos do dia em que os militares depuseram João Goulart e assumiram o poder, dando início a um regime ditatorial no Brasil que perdurou por 21 anos.
Nas palavras de seu porta-voz, “o presidente não considera 31 de março de 1964 um golpe militar. Salvo melhor juízo, se isso não tivesse ocorrido, hoje nós estaríamos tendo algum tipo de governo aqui que não seria bom para ninguém”. As comemorações da ocasião, chamada de Revolução de 1964 pelos apoiadores da ditadura, já ocorriam nos quartéis, embora tenham sido barradas por Dilma Rousseff em 2014.
O Ministério Público Federal, a Defensoria Pública da União e a Ordem Brasileira dos Advogados (OAB) já se manifestaram em repúdio à recomendação do presidente. “Comemorar a instalação de uma ditadura que fechou instituições democráticas e censurou a imprensa é querer dirigir olhando para o retrovisor, mirando uma estrada tenebrosa”, afirmou Felipe Santa Cruz, presidente da OAB.
Sem dúvida há uma disputa de narrativa sobre o período, e chamar o episódio de “golpe” ou de “revolução” denota um posicionamento sobre o que aconteceu. É importante, no entanto, resgatar o significado histórico de cada um dos termos e analisá-los sob a luz dos fatos daquele 31 de março de 1964 e dos anos que o precederam.
Revolução ou manutenção?
Diferente do que muitas vezes estudamos, a conspiração que culminou na queda de Jango não começou apenas com o descontentamento por conta de suas políticas reformistas (que propunham, entre outras coisas, uma reforma agrária). A própria renúncia de Jânio Quadros, em 1961 — que elevou Jango de vice à presidente — foi uma tentativa de que, por meio do clamor popular, Jânio voltasse ao governo, mas dessa vez respaldado pelas forças militares.
O plano não foi bem sucedido: além de haver conflitos na cúpula dos militares em relação às estratégias para tomar o poder, nem todas as subdivisões das Forças Armadas apoiavam a medida e boa parte do povo aprovava a João Goulart, especialmente depois da campanha movida pelo seu aliado (e cunhado) Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul. Desesperançosos, os militares se conformaram com uma das propostas do Congresso: aprovar um regime parlamentarista de governo, diminuindo assim os poderes do Executivo, que seria encabeçado a partir daí por João Goulart.
As motivações por trás da tentativa de assumir o poder giravam em torno, prioritariamente, da “doutrina política nacional de segurança e desenvolvimento” elaborada na Escola Superior de Guerra, em trabalho conjunto com as elites políticas e econômicas. Políticos, militares, empresários e ruralistas, embora também com divergências entre si, esperavam implementar um modelo no Brasil semelhante ao adotado por outros países capitalistas, com foco no mercado e no liberalismo econômico.
Os militares conheciam as inclinações políticas de João Goulart desde o seu exercício no Ministério do Trabalho, em 1954, e sabiam que ele não estaria disposto a implementar medidas que aprofundariam a concentração de renda em prol da modernização da economia. Além disso, ele tinha certa influência perante a ala mais próxima da esquerda e dos sindicatos. Quando, em 1963, um plebiscito apontou por uma diferença de mais de 7 milhões de votos a vontade popular pela volta do presidencialismo, os militares sentiram a urgência de derrubar Jango. Com a volta do presidencialismo, eles teriam poder para realizar suas reformas.
O movimento de 1964 propunha mudança e rompimento com o cenário imediato, motivado, entre outros, por um temor de uma revolução socialista. Mas, no jogo do poder, pouca coisa mudou. As elites econômicas que mandavam no país continuaram no mesmo lugar. “Um golpe de Estado é um movimento mais restrito à esfera política governamental, visando assegurar o status quo e os interesses de uma classe dominante, que pode estar sendo ameaçada por políticas de cunho reformista”, diz o sociólogo Renato Cancian, pesquisador e professor universitário. De acordo com ele, em um governo golpista podem até ocorrer mudanças na estrutura do Estado e nas políticas sociais e econômicas, mas elas não alteram o poder das classes dominantes.
Já uma revolução é algo muito mais profundo, em que se propõe uma mudança substancial das estruturas do Estado. Por isso, nem todo golpe é uma revolução. Como bem lembrou Caio Navarro de Toledo, professor aposentado do departamento de Ciência Política da Unicamp, em um artigo ao jornal da universidade, até um dos próprios presidentes do Brasil durante o regime militar, Ernesto Geisel, não considerava o acontecimento uma revolução. Em um famoso discurso em 1981, ele afirmou que “o que houve em 1964 não foi uma revolução. As revoluções se fazem por uma ideia, em favor de uma doutrina”.
Além disso, o movimento de 1964 se esforçou para parecer que estava seguindo as regras do jogo democrático, prometendo eleições que não viriam, sob o argumento de que o país ainda não estava preparado. É uma aparência de legalidade e de dever constitucional que em nada se assemelha com um movimento revolucionário, que se proporia a subverter essa ordem. O Brasil não virou de pernas para o ar como Cuba a partir de 1959 ou o Irã, 20 anos depois. O exemplo desses dois países enaltece outro ponto que fica obscurecido quando tratamos tanto de 1964 e nos esquecemos de outros episódios da história. Golpe e revolução não são termos ligados a esquerda ou direita, por mais que pareçam. A troca de um grupo por outro no poder, sustentado pela participação popular, não significa que o novo a assumir será mais “progressista” ou algo do tipo, como bem observamos no Irã. Na Revolução de 1979, a monarquia autocrática do xá Reza Pahlevi, pró-EUA, foi derrubada. O país virou uma república islâmica teocrática, comandada pelo aiatolá Ruhollah Khomeini. O Irã passou por uma profunda mudança social, política e cultural, com inegável apoio popular. Por isso, é considerado uma revolução.
A participação popular
O sentimento de legalidade não partia espontaneamente dos conspiradores: a própria sociedade o demandava. Foi o que os militares perceberam após as tentativas falhas de assumir o poder em 1961. Da próxima vez, teriam que construir uma “base legal” e, assim, conquistar o apoio do povo.
Conseguiram, de fato, mobilizar boa parte da população. Mas, muito, por meio do medo. Em um contexto de Guerra Fria, remeter a figura de um presidente defensor da reforma agrária a um comunista ditatorial não foi tarefa muito difícil para os militares e políticos que arquitetaram o golpe. A começar, Jânio Quadros renunciou à presidência justamente no momento em que Jango fazia uma viagem à China e à URSS.
Daí até 1964 houve uma massiva campanha para preparar o terreno, conduzida principalmente pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPE). Registrado como “agremiação apartidária”, o IPE mobilizou setores da política e da sociedade, especialmente da classe média.
Por fim, vale mencionar que a organização aglutinada em favor de derrubar Jango e, posteriormente, atuante nos anos de chumbo, era inconsistente e divergente: “com a censura aos meios de comunicação, o regime parecia estável, mas na verdade ele foi marcado por lutas internas”, afirma Cancian.
A participação popular é um dos elementos centrais de um movimento revolucionário, mas o sociólogo esclarece que não se trata de uma “mera participação de cidadãos comuns na rua, mas uma participação organizada, como partidos de massa, sindicatos, movimentos sociais, entre outros”. O golpe não contou com esse apoio. Pelo contrário, foram justamente esses grupos que a ditadura tratou de desmontar no pós-64 por meio de um forte aparelho coercitivo.
E por que a Revolução de 1930 é chamada assim?
Embora, à época, o movimento de 1930 tenha se denominado dessa forma, é importante dizer que ele também é alvo de discordâncias entre historiadores e estudiosos do tema. O jornalista e escritor Laurentino Gomes, autor dos best-sellers 1808, 1822 e 1889, afirma que concorda com o que seu colega Lira Neto aponta na biografia que escreveu sobre Getúlio: ainda que fosse um civil, Vargas chegou ao poder por meio de uma genuína quartelada. O que houve em 1930 foi um golpe de Estado.
Mas o nome Revolução de 1930 pegou porque ele rompeu, de certa forma, com a classe dominante que sustentava a República Oligárquica, promovendo um desenvolvimento econômico, modernização burocrática e um consequente fortalecimento de outras classes sociais.
A leitura de muitos estudiosos é de que o movimento liderado por Getúlio foi, antes de tudo, uma revolução das classes médias urbanas. Outros, como o historiador e cientista político Boris Fausto, sequer consideram que houve essa revolução, e afirmam que o que aconteceu foi um “rearranjo político”, levado à frente por um grupo de dissidentes da oligarquia que se aliaram aos militares, estabelecendo um “estado de compromisso”.
Segundo Laurentino Gomes, a diferença no tratamento desses eventos históricos tem profunda relação com a sociedade, que sanciona ou não o termo. Não só 1930, mas 1889 também. Afinal, a proclamação da República também foi um golpe. De acordo com ele, “no passado, intervenções violentas nas instituições e no processo político tendiam a ser aceitas de forma mais natural”.
Em 1964 não ocorreu o mesmo. Embora parte da sociedade civil tenha apoiado o golpe, outra parte não. E as mudanças na sociedade, na estrutura do Estado, na pirâmide social foram muito mais sutis do que em 1889 ou 1930. Por isso os especialistas podem até divergir com a nomenclatura desses outros eventos históricos, mas em relação a 1964, todos concordam: foi um golpe.
Golpe de 1964 ou Revolução de 1964? Publicado primeiro em https://guiadoestudante.abril.com.br/